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0 A Insustentável Leveza do Ser + Opinião


A Insustentável Leveza do Ser é seguramente um dos romances míticos do século XX, uma daquelas obras raras que alteram o modo como toda uma geração observa o mundo que a rodeia. Adaptado ao cinema por Philip Kaufman, este é um livro onde se olha, com um olhar umas vezes melancólico e conformado, outras vezes amargo e revoltado, para o destino de um país, para o destino de um continente, para o destino de uma civilização. E poucas vezes se terá tão magistralmente representado a ligação existente entre a aventura individual e a colectiva… Justapondo lugares distantes geograficamente, reflexões brilhantes e uma variedade de estilos, este magnífico romance representa o auge daquele que é, verdadeiramente, um dos maiores escritores de sempre.

Autor: Milan Kundera
Editor: BIS (2014) 
Género: Romance
Páginas: 400
Original: Nesnesitelná lehkost bytí (1981) 
 Los Angeles Times Book Prize for Fiction (1984)




opinião
     (5 em 5)


Não consigo fazer justiça a este livro; não consigo porque sempre que me sento para o fazer a minha mente dispara imediatamente em milhentas direções fascinantes, percorre várias dicotomias. E depois, percebi, partilhar isso é o maior elogio que posso fazer a este trabalho de Milan Kundera


Logo ao início, Kundera atinge-nos com a indagação filosófica que, embora não única, serve de base para todo o livro - o peso e a leveza. Se, em oposição ao mito do eterno retorno de Nietzsche, temos apenas uma vida, uma única oportunidade de fazer algo, então o ser constitui-se de leveza. No entanto, se cada segundo da vida tivesse repetição infinita, todos os gestos teriam «o peso de um insustentável responsabilidade». «Será o peso atroz e a leveza bela?»…Podemos sequer atribuir peso à vida? E se aplicarmos esta medida ao amor e ao sexo, «que escolher, então? O peso ou a leveza?». E nas nossas relações, os outros pesam-nos ou tornam-nos mais leves?

O paradoxo conservar-se-á em discussão ao longo do livro, destinado a permanecer sem resolução, enquanto vamos viajando pelas páginas de A Insustentável Leveza do Ser, vadiando por caminhos alternativos cheios de observações curiosas, reflexões filosóficas e intelectualização, regressando sempre ao trilho principal para acompanhar a evolução da história destes personagens, dois casais, um cão e um filho não desejado, decorrida durante a ocupação de Praga em 1968.

Kundera alterna de forma fascinante entre filosofia e crítica política, entre história e História, recorrendo a várias perspectivas, avançando e recuando no tempo. Em apenas 391 páginas o autor deu-nos conteúdo para horas e horas de conversa e reflexão pessoal. Todos temos mesmo a necessidade de ser olhados/observados? A nossa relação com os animais é a única «verdadeira», já que não está condicionada por interesses e forças? Temos uma missão na vida, ou tal não passa de uma «palavra parva»? O que o eu tem de único encontra-se exclusivamente no que o ser humano tem de inimaginável? Viver na verdade, não mentir nem a si próprio nem aos outros, só é possível se não houver público nenhum? E o que dizer sobre a transformação planetária da música em ruído? A paixão pelo extremismo? As «vertigens» que são, não o medo de cair, mas «a voz do vazio por debaixo de nós que nos enfeitiça e atrai?». E depois temos ainda esta frase: «Enquanto as pessoas são novas e as partituras musicais das suas vidas ainda só vão nos primeiros compassos, podem compô-las em conjunto e até trocarem temas (…) Porém, quando se conhecem numa idade mais madura, as suas partituras musicais já estão mais ou menos acabadas e cada palavra, cada objecto, tem um significado diferente na partitura de cada uma.»…

Como disse, não é fácil abordar este livro como um todo, mas focar apenas algumas partes, deixando as outras para trás, é muito injusto quando todo o livro, e seu conteúdo, é digno de nota. Portanto, fiquemos assim: quando puderem, passem umas horas com A Insustentável Leveza do Ser. Vale bem a pena.



Frases Preferidas:
«todos os gestos têm o peso de uma insustentável responsabilidade.» - p.11

«Que escolher, então? O peso ou a leveza?» - p. 11

«Nunca se pode saber o que se deve querer porque só se tem uma vida que não pode ser comparada com vidas anteriores nem rectificada em vidas posteriores» - p. 15

«Tudo se vive imediatamente pela primeira vez sem preparação. (…) Mas o que vale a vida se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? - p. 15

«As metáforas são uma coisa perigosa. Com as metáforas não se brinca. O amor pode nascer de uma única metáfora.» - p. 18

«Quem quer deixar o lugar onde vive é porque não é feliz» - p. 38

«andava sempre com o seu modo de vida atrás como o caracol anda co a sua casota.» - p. 40

«esses anos eram mais belos na memória do que no instante em que os vivera…» - p. 41

«só é grave o que é necessário, só tem valor o que pesa» - p. 46

«Mas, quanto menos nos preocupamos com o nosso corpo, mais depressa somos vítimas dele.» - p. 53

«Para enfrentar o mundo grosseiro que a rodeava não tinha, com efeito, senão uma arma: os livros.» - p. 64

«Gostava de andar pela rua com livros debaixo do braço. Eram para ela o que a bengala era para os dandies do século passado. Distinguiam-na dos outros.» - p. 64

«Só o acaso pode ser interpretado como uma mensagem. O que acontece por necessidade, o que já era esperado e se repete todos os dias é perfeitamente mudo. Só o acaso fala.» - p. 65

«O sonho é a prova de que imaginar, sonhar com o que nunca existiu, é uma das necessidades mais profundas do homem.» - p. 78

«É natural que quem quer «elevar-se» sempre mais, um dia, acabe por ter vertigens. (…) As vertigens não são o medo de cair. É a voz do vazio por debaixo de nós que nos enfeitiça e atrai, o desejo de cair do qual, logo a seguir, nos protegemos com pavor.» - p. 80

«ter vertigens é embriagarmo-nos com a nossa própria fraqueza (…) queremos ficar ainda mais fracos, cair por terra em plena rua à frente de toda a gente, focar por terra, ainda mais abaixo do que a terra.» - p. 101

«Enquanto as pessoas são novas e as partituras musicais das suas vidas ainda só vão nos primeiros compassos, podem compô-las em conjunto e até trocarem temas (…) Porém, quando se conhecem numa idade mais madura, as suas partituras musicais já estão mais ou menos acabadas e cada palavra, cada objecto, tem um significado diferente na partitura de cada uma.» - p. 115

«O que não é efeito de uma escolha não pode ser considerado como mérito ou como fracasso.» - p. 116

«A primeria traição é irreparável. Por reação em cadeia, provoca outras traições que fazem a pessoa afastar-se cada vez mais do ponto de traição inicial.» - p- 119

«a transformação da música em ruído é um processo planetário, que faz a humanidade entrar na fase histórica da fealdade total. A fealdade absoluta começou por manifestar-se através da omnipresença da fealdade acústica: carros, motorizadas, guitarras elétricas, escavadoras, altifalantes, sirenes. Não tardará a seguir-se a omnipresença da fealdade visual.» - p. 120

«tanto em arte como em política, a paixão do extremismo é um desejo de morte disfarçado.» - p. 121

«Há cada vez mais universidades e cada vez mais estudantes. Estes, para obterem os seus canudos, primeiro têm que fazer uma tese sobre um dado tema. E não é difícil arranjar um tema, porque basta glosar o que já foi dito. E como tudo pode ser glosado, há um número infinito de temas. E assim, cada vez há mais e mais resmas de papel enegrecido amontoadas em arquivos ainda mais tristes do que cemitérios, porque ninguém lá entra, nem mesmo no dia de Todos os Santos. A cultura está a desaparecer numa infinidade de produtos, numa avalanche de letras, na demência da quantidade. Acredita em mim: um único livro proibido no teu antigo país tem um significado infinitamente maior do que os milhões de palavras escarrados pelas nossas universidades.» - p. 131

«viver na verdade, não mentir nem a si próprio nem aos outros, só é possível se não houver público nenhum. A partir do momento em que os nossos actos têm uma testemunha, quer queiramos quer não, adaptamo-nos aos olhos que nos observam; e, a partir de então, nada do que fazemos é verdadeiro. Ter um público, pensar num público, é viver na mentira. » - p. 142

«O seu drama não era o drama do peso, mas o da leveza. O que se abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável levaza do ser.» - p. 153

«O que é curioso é que dizemos palavrões de manhã à noite, mas basta ouvirmos na rádio um tipo conhecido e respeitado pontuar o seu discurso com uns estou-me a cagar para eles para, inconscientemente, nos sentirmos algo desapontados.» - p. 163

«As retretes das casas de banho modernas erguem-se do chão como uma flor branca de nenúfar. Os arquitetos fazem os impossíveis para que o corpo esqueça a sua miséria e para que o homem não saiba o que acontece às dejeções das suas vísceras quando a água do autoclismo, a gorgolejar, as expulsa da vista. Embora os seus tentáculos se prolonguem até nossas casas, os canos de esgoto estão sempre cuidadosamente disfarçados e por isso não sabemos absolutamente nada a respeito das invisíveis Venezas de merda sobre as quais se encontram construídas as nossas casas de banho, os nossos quartos, os nossos salões de baile e os nossos parlamentos.» - p. 197

«A maior parte das vezes, para escapar ao sofrimento refugiamo-nos no futuro.» - p 210

«os amores são como os impérios: desaparecendo a ideia sobre a qual estão construídos, também eles desaparecem.» - p. 216

«O que o eu tem de único encontra-se precisamente naquilo que o ser humano tem de inimaginável. Só consegue imaginar-se o que é idêntico em todos, o que é comum a todos. O «eu» individual é aquilo que se distingue do geral, e é, portanto, aquilo que não pode ser adivinhado nem calculado antecipadamente, aquilo que primeiro é preciso desvendar, descobrir, conquistar no outro.» - p. 250

«o ideal é precisamente o que nunca se encontra.» - p.252

«O filho de Estaline deu a vida pela merda. Mas morrer pela merda não é uma morte absurda. Os alemães que sacrificaram a vida para aumentar o território do império para leste, os russos que morreram para que o poder do seu país se estendesse mais para ocidente, esses sim, morreram por um disparate e a sua morte não tem nem qualquer espécie de sentido nem de valor geral. Em contrapartida, a morte do filho de Estaline foi a única morte metafísica no meio da estupidez universal da guerra.» - p. 303

«A merda é um problema teológico mais difícil do que o mal.» - p. 304

«Ao expulsar o homem do Paraíso, Deus revelou-lhe tanto a sua natureza imunda como o nojo.» - p. 306

«Apesar de tudo, ninguém pode pretender que a merda seja imoral!» - p. 308

«o acordo categórico com o ser tem como ideal estético um mundo onde a merda é negada e onde todos se comportam como se ela não existisse.» - p. 308

«Era precisamente essa estúpida tautologia («Viva a vida!») que empurrava para o desfile comunista muita gente que era perfeitamente indiferente ao comunismo.» - p. 311

«Quando o coração falou, não convém que a razão levante objecções.» - p. 313

«Antes de nos esquecerem, hão-de transformar-nos em kitsch.» - p. 352

«a humanidade é um parasita da vaca, tal como a ténia é um parasita do homem: está presa às suas tetas como uma sanguessuga.» - p. 362

«Deus encarregou os homens de reinar sobre os animais, mas isso pode explicar-se dizendo que esse poder apenas foi emprestado. O homem não era o proprietário, mas um simples gerente do planeta; mais dia menos dia, teria de prestar contas pela sua gestão.» - p. 362

«Será sempre impossível determinar com um mínimo de segurança em que medida é que as nossas relações com outrem resultam dos nossos sentimentos, do nosso amor, do nosso desamor, da nossa benevolência ou do nosso ódio, e em que medida é que estão previamente condicionadas pelas relações de forças entre os indivíduos. A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (…) são as suas relações com quem se encontra às sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que está na origem de todos os outros.» - p. 364

«Como saber em que momento é que o sofrimento se torna inútil? Como determinar o momento em que estar vivo deixa de valer a pena?» - p. 375

«Missão? Qual missão? Missão é uma palavra parva. Eu não tenho missão nenhuma. Ninguém tem missão nenhuma. E é um alívio enorme uma pessoa perceber que é livre, que não tem missão nenhuma.» - p. 390

«Sentia a mesma estranha felicidade, a mesma estranha tristeza. A tristeza queria dizer: estamos na última paragem. A felicidade queria dizer: estamos os dois juntos. A tristeza era a forma, e a felicidade era o conteúdo. A felicidade preenchia o espaço da tristeza.» - p. 391


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